"Venenos podem ser empregados como uma forma de destruição da vida ou como agentes de tratamento de doenças"
Justinus Andreas Christian Kerner (Ludwigsburg, 18 de Setembro 1786 - Weinsberg, 21 de Fevereiro de 1862) foi um médico, escritor e poeta alemão.
Kerner foi o primeiro a fazer uma descrição detalhada do botulismo (Clostridium botulinum), sendo ainda o precursor das aplicações terapêuticas da toxina botulínica, experimentando em diversos animais, e em si próprio, os seus efeitos.
A história do C. botulinum e da toxina botulínica tem início no final do século
XVIII, com o relato de envenenamentos alimentares após o consumo de lingüiça,
sangue e de carne e a ocorrências de várias mortes no Reino de Württemberg
A Guerra Napoleônica (1795-1813) havia acarretado problemas econômicos e
levado, dentre outras coisas, à negligência nas medidas sanitárias de controle
da produção rural de alimentos, o que contribuiu para a epidemia do então chamado
“envenenamento por lingüiça".
Dentre os sintomas apresentados pelas vítimas, estavam a midríase e a
paralisia muscular progressiva, levando inicialmente à suspeita de intoxicação por
Entre 1793 e 1827 foram registrados 234 casos de intoxicação em Württemberg.
Em 1811, o Departamento de Assuntos Internos de Reino de Württemberg atribuiu
o “envenenamento por lingüiças” a uma substância conhecida como “ácido prússico"
(hoje, ácido hidrociânico ou cianídrico).
A análise dos casos relatados ao longo danos, resultou no anúncio público, pelo
governo alemão, de sintomas gastrointestinais, autonômicos e
neuromusculares relacionados a envenenamentos alimentares, enfermidade
posteriormente chamada de botulismo (botulus: do latim, lingüiça).
Os estudos científicos sobre o botulismo se iniciaram em 1817 com as investigações
realizadas pelo médico e poeta alemão Justinus Kerner (1786-1862), que descreveu
clinicamente e em detalhes o botulismo.
Em 1820, Kerner sumarizou 76 casos de pacientes que apresentavam evidências clínicas do que hoje conhecemos como botulismo.
Em 1822, Kerner publicou 155 relatos de caso de pacientes com botulismo e escreveu
uma monografia completa sobre a toxina oriunda de lingüiças, com base em
experimentos com animais conduzidos por ele próprio, a partir dos quais fez as
i) a toxina se desenvolve em lingüiças azedas em condições anaeróbias;
ii) tem a capacidade de interromper a transmissão motora no
sistema nervoso periférico e autonômico;
iii) é letal em pequenas doses.
No entanto, até este momento, Kerner ainda não sabia que a toxina seria produzida
por um microrganismo, suspeitando que a mesma tivesse origem animal.
A ocorrência de casos de botulismo suscitou várias investigações sobre a possível
Publicando suas análises entre 1817 e 1822 na revista Tubinger
Blatter fur Naturwissenschaften und Arzneykunde (Tubinger Papers for Natural
Sciences and Pharmacology) ele chegou, naquela época, a vislumbrar possíveis utilizações terapêuticas para o que ficou conhecido como o “veneno das salsichas
defumadas´´. Ele orientou que a fervura poderia evitar a doença, oferecendo uma das
primeiras lições sanitárias da história da medicina.
Van den Corput postulou que um fungo, o qual denominou Sarcina botulina, poderia
Porém, como não se conseguiu isolar tais fungos, sua teoria caiu por terra .
Várias teorias foram propostas até que, em 1895, Emile Van Ermengem (1851-1922), um microbiologista treinado em Berlim por Robert Koch (1843-1910),
correlacionou a epidemia de botulismo ocorrida em um funeral no vilarejo belga de
Ellezelles com o isolamento de uma bactéria encontrada em alimentos servidos no
evento, no qual 34 pessoas foram contaminadas, incluindo todos os músicos
da orquestra contratada, sendo que 3 pacientes foram a óbito.
Nos restos de alimentos servidos no funeral, Van Ermengem isolou esporos de um
bacilo anaeróbio, o qual chamou de Bacillus botulinus. Além disto, Van Ermengem
provou se tratar de uma toxina ao utilizar um filtrado do cultivo livre de bacilos e
esporos em animais de laboratório, os quais manifestaram sinais de
paralisia. Posteriormente, o Bacillus botulinus foi renomeado, passando a ser
chamado de Clostridium botulinum.
Na mão dos militares americanos, a toxina tornou-se a mais promissora arma
biológica da Guerra Fria. Teve seu uso na Guerra da Coréia, mas sem muito sucesso.
Apesar de ser o veneno mais potente sob controle do ser humano – quer dizer,
podemos fabricá-lo, purificá-lo, transportá-lo e utilizá-lo quando e onde quisermos,
felizmente a natureza o fez de maneira extremamente frágil e instável
Depois de diluí-lo, qualquer agitação do líquido pode separar as duas partes da
molécula de que é composta a toxina e fazer com que ela perca toda a sua potência, por isso seu uso militar passou a ser secundário.
Depois de perceber que sua utilização como arma estava ameaçada, os militares a presentearam a um oftalmologista, o doutor Alan Scott, que fez o primeiro uso médico da toxina ao tratar estrabismo e blefaroespasmo (uma contração involuntária da pálpebra que impede a pessoa de abrir os olhos e enxergar).
Em 1978 a toxina foi aplicada em humanos, como tratamento, por Scott e surpreendentemente se encontrou uma segurança que a faria ser utilizada em muitas outras indicações médicas, inclusive as estéticas.
Jean Carrhuthers trabalhou com Scott aplicando a toxina para tratamento de estrabismo. Uma paciente de estrabismo tratada por Carrhuters relatou que suas rugas melhoravam muito quando a toxina era aplicada. Junto com seu marido, Jean Carrhuters passou a utilizar a Toxina Botulínica para fins cosméticos, dando início a revolução que observamos no tratamento das rugas e do envelhecimento.
O uso de toxinas como medicamentos faz parte da história da medicina, assim foi com a penicilina produzida por um fungo, e com o captopril, uma droga muito utilizada para hipertensão, derivada do veneno da cobra jararaca e muitas outras.
As doses utilizadas para o tratamento das rugas com a toxina são em torno de 30 vezes inferiores às que seriam capazes de causar complicações maiores, semelhantes as doenças. Isto oferece uma grande segurança.
O poeta médico e cientista Kerner , ficaria satisfeito em ver uma tão perigosa toxina ser domada e utilizada para a felicidade e a qualidade de vida das pessoas .
A sua residência em Weinsberg, no Sudoeste da Alemanha, é atualmente um museu em sua homenagem.
Destacou-se como poeta, tento formado com Johann Uhland, Schwab e Mörike, a chamada "Escola Suaba". Publicou cinco coleções de poesia entre 1826 e 1854, e, em prosa, a obra "Silhuetas de Viagem"(1811), "Livro Ilustrado da Minha Adolescência" (1849), além do "A Vidente de Prevorst" (1829).
* Um jogo muito difundido no século XIX chamado Klecksographie (Klecks significa mancha de tinta) em que os jogadores criavam pequenos poemas a partir de manchas abstratas de tinta - cujo princípio básico é o mesmo de formar figuras com as nuvens dispostas no céu.
O Botulismo
A toxina botulínica é uma potente neurotoxina produzida pelo Clostridium botulinum, um bacilo gram-positivo, anaeróbio estrito, que pode ser encontrado no solo e também em coleções de água doce ou salgada em todo o mundo.
Estes esporos podem ser encontrados em alimentos e, se ingeridos, podem levar ao botulismo infantil, com produção de toxina botulínica no intestino grosso do hospedeiro
Considerada como a substância mais letal conhecida atualmente, a toxina botulínica possui dose letal média (DL50 – dose de toxina capaz de levar à morte 50% da população a ela exposta) de 1 nanograma de toxina por quilograma de peso corporal (10-9 g/kg). Pode levar à ocorrência de botulismo alimentar se ingerida e absorvida por hospedeiros susceptíveis através de fontes alimentícias contaminadas com a toxina pré-formada.
O diagnóstico clínico é feito pelos sintomas: paralisia muscular progressiva, iniciando-se pela face, ptose palpebral (fecha o olho), dificuldade de deglutição, visão dupla. Os sintomas progridem pela musculatura, causando dificuldade motora e de respiração. Os sintomas podem se confundir com doenças nervosas e diversas intoxicações, como por pesticidas, o que as vezes retarda o tratamento
O tratamento é feito geralmente com a aplicação de soro antibotulínico e, não raras as vezes, é necessário que a pessoa acometida se já internada, para que fique em observação. Antibióticos não são eficazes para esse caso.
Considerando os problemas e riscos relacionados à infecção pelos esporos da Clostridium botulinun, é importante adotar algumas medidas com a finalidade de prevenção:
- Não adquirir nem ingerir alimentos cuja lata ou tampa se apresentem estufadas ou enferrujadas;
- Não adquirir nem ingerir alimentos cujo conteúdo líquido se apresente turvo;
- Não adquirir nem ingerir alimentos cujo vidro se apresente turvo;
- Só consumir mel de procedência conhecida;
- Ferver alimentos enlatados antes do consumo, principalmente o palmito, já que este é um dos alimentos mais relacionados aos casos de botulismo (a toxina é destruída à temperatura de 65 a 80º C por 30 minutos; ou à 100 º C por 5 minutos).
Brunno Rosique
Cirurgião Plástico